Margarida Fonseca Santos e Isabel Peixeiro – Gente com histórias no sangue
A nova área do site Desculpas para Ler designa-se Gente com histórias de sangue. Gente que se relaciona com as histórias, com os livros, com a leitura, com a escrita, com partilha, com a palavra, com o diálogo nos seus mais diversos formas, feitios e cores.
Começamos com convidadas de luxo que fazem da escrita o seu nome do meio e que admiro muito. Margarida Fonseca Santos é uma referência, uma sumidade na escrita. Tudo o que faz é bem feito e, apesar de não a conhecer pessoalmente, sente-se a sua generosidade. Também senti que temos hábitos comuns, nunca me deito (seja que horas forem) sem ler. A Isabel conheci através da sua página de Instagram, Grandes Histórias Mãos Pequenas. Atraiu-me a forma como encaramos o livro infantil e infanto-juvenil e o modo como partilha as leituras deste género, com clareza, criatividade e conhecimento. Mais tarde, percebi que trabalhava com a Margarida. Hoje, a Isabel Peixeiro acompanha-se na definição do “cardápio” da área «Os Livros têm Opinião».
Convidei-as para iniciarem estas conversas e para que no Dia Mundial da Rádio, pudesse dar palco ao trabalho que têm desenvolvido na Re-Word-IT, que também tem espaço na Rádio ZigZag.
Margarida Fonseca Santos / Escritora e formadora (M) e Isabel Peixeiro/Mediadora de leitura e escrita (I),
- Se te tivesses de dar um título como te definias?
M – Ui, detesto dar títulos aos livros, a mim, ainda pior. Talvez «Aprendiz de magia». Acredito que as histórias são mágicas, entram por nós adentro, mudam-nos, revoltam-nos, comovem-nos, inspiram-nos.
I – Eu escolheria “a perguntadora”. Acredito que tudo começa com uma pergunta. Foi a curiosidade que me conduziu quer ao mundo dos livros quer ao mundo da ciência. São as perguntas que me levam a ler, a observar, a ouvir e a aprender.
- Fala-nos do teu projecto. O que o diferencia em Portugal? Qual o móbil?
I – O Re-Word-It é um projeto sobre a descoberta do prazer e da curiosidade na aprendizagem da leitura e da escrita. Focamo-nos em aprender o aprender, pensar e refletir sobre a forma como o fazemos, ao mesmo tempo que treinamos a atenção.
M- Sim, o treino da atenção e da memória – é algo que se exige aos alunos a toda a hora, e que pouco se treina. Para além disso, trazendo uma estratégia da música, trabalhamos a audição interior, ou seja, a capacidade de ouvir e imaginar mentalmente o texto que se vai ler. Se para bons leitores isto não é necessário, para os que têm dificuldades na leitura podem aqui encontrar uma abordagem que lhes irá desbloquear o medo de ler, reforçar a leitura automática de cada vez mais palavras, com uma forte intervenção da intenção, da entoação.
I – E inserimos sempre jogos e brincadeiras que ajudam o cérebro a descontrair. No fundo, é um investimento na curiosidade e no prazer da aprendizagem.
- Tens uma relação séria com a leitura ou preferes encontros sem hora marcada?
M – Tenho uma relação tão séria que nunca apago a luz sem ler, seja a que horas for. Esse meu espaço de leitura é sagrado e necessário, não abdico dele.
I – Prefiro encontros sem hora marcada, aproveitar uma pequena sobra de tempo, ou roubar um momento (ou mais) ao longo do dia. Ainda assim, diria que é uma relação séria, afinal, já dura desde a década de 80.
- Devoras livros ou estás sempre em dieta?
M- Devoro, sim, leio muitos livros, às vezes dois ao mesmo tempo. É um prazer imenso, quando leio literatura, e um mergulhar no conhecimento, quando estudo.
I – Não me meto em dietas, principalmente literárias. Tenho fases em que devoro livros mais depressa, noutras, demoro a saborear; mas sempre sem dietas – porque os livros não engordam, só fazem crescer.
- Dizem que os nossos pais e avós eram para nós o livro (já que quando somos mais novos apenas vemos as imagens e somos ouvintes), eram os nossos contadores de histórias. Guardas histórias de infância ou apenas berlindes?
I – Até guardo alguns berlindes, em miúda jogava sempre no recreio da escola. Mas guardo sobretudo histórias de tradição oral, como “O coelhinho branco” e “Corre, corre cabacinha”. Na verdade, não será bem guardar, são histórias que me construíram e que se eternizam. Passam de geração em geração.
M – Também guardo muitas histórias – contadas pelas minhas tias, e também dos anos em que andei no Colégio Inglês, onde contar histórias fazia parte da rotina diária (e estávamos em 1963-66). Histórias com cheiro, a memória dos momentos, dos afetos.
- Qual a personagem ou personalidade (viva ou já desaparecida) que gostarias que te contasse uma história? E, porquê?
M – A ligação mais forte que tenho é com duas personagens de livros que escrevi, em «O Reino de Petzet»: Guevin e Tigre. Preciso muito das suas histórias e volto a elas como se lesse pela primeira vez, como se não tivesse sido eu a escrevê-las. Talvez esteja ali grande parte do segredo da minha vida.
I – Adoraria ouvir uma história de Luís Sepúlveda. É, sem dúvida, um dos escritores que marcou a minha adolescência. Através dos seus livros, aprendi o significado de resiliência e coragem. Mais tarde, já como mãe, descobri os livros infantis que continuamos a ler e reler em família. São histórias que têm direito a um lugar especial na minha estante.
- O que achas que não deve faltar numa biblioteca pessoal e porquê?
I – Livros, que se leiam e se vivam, que estejam à mão de semear, prontos a oferecerem-nos uma viagem pelos mundos que trazem dentro.
M – Também não sou nada fundamentalista nesse ponto. Para mim, uma biblioteca pessoal é feita dos livros que trouxeram algo para quem os leu. Pode ser porque foram lidos em épocas específicas ou porque a história fascinou a pessoa. Sinto isso nas arrumações de estantes: há livros que sei que nunca vou poder dar, são a minha biblioteca pessoal.
- O que substituías por um livro?
I – O que não substituiria por um livro? Seria mais fácil de enumerar.
M – Conversas desinteressantes e repetitivas, sem hesitar… Séries vazias. Ler é um momento tão meu que o anseio com frequência.
- A cabeceira treme de livros ou apenas com o despertador do telemóvel? Conta-nos o que tens por lá?
M – A cabeceira tem muitos livros, mas quase tudo o que leio agora está no e-reader, porque me custa segurar um livro nas mãos, que estão muito estragadas. E é um segredo familiar: o meu marido nem sonha a quantidade de livros que tenho lá dentro!
I – Tenho uma regra que respeito incondicionalmente: no quarto não entram telemóveis. Já os livros… devem estar sempre por perto, por isso a cabeceira é tão bom lugar como a estante ou a mochila.
- Tens livros de vida ou a tua vida dava um livro?
M – Tenho livros de vida, que me marcaram por razões específicas. Recordo-os em contexto. Por exemplo, ler Simone de Beauvoir e ouvir o meu marido a estudar piano ao fundo; ou mergulhar na «Gramática da Fantasia», de G. Rodari, nas margens do rio, em São Pedro do Sul.
I – Também diria que tenho muitos livros de vida, que serviram de refúgio, companhia ou que guardam memórias que me são queridas. Mas tenho esperança de vir a ter muitos mais.
- Uma decisão na vida que mudaste inspirada pela leitura de um livro?
M – Muitas vezes, sobretudo pelos livros de que falei antes, «O Reino de Petzet», acordei para as decisões a tomar. Mas também com livros que me fizeram voltar ao início, ler de novo, perceber que era o momento de mudar, como foi quando larguei o ensino da música.
I – Não posso dizer que um livro específico tenha estado na origem de uma decisão. Mas sei que sou feita de livros, o que li – e o que vivi ao ler cada livro – faz parte de mim e das minhas decisões também.
- Um bom livro existe ou é ficção? Existem livros maus?
M – Existe, claro que existe! Ficção é dizer que um livro o é bom para todos, nisso já não acredito. Livros maus? Sim, existem, mas isso é tão subjetivo. Para mim, um livro mau não tem beleza na escrita, porque não chega a história, preciso do “como foi contada.”
I – É isso: existem bons livros e existem maus livros que serão diferentes para cada leitor.
- Qual o livro que mais recomendaste até hoje?
M – Sinceramente, são dois: «O homem sem nome», de João Aguiar e «Educar para o otimismo», de três autores fundamentais para a ecologia emocional – Luís Miguel Neto, Helena Marujo e Maria de Fátima Perloiro.
I – No meu caso, penso que serão o “o Brincador” de Álvaro Magalhães e “A gramática da fantasia” de Gianni Rodari. Embora os recomende em contextos diferentes, os dois despertam a eternização da fantasia e da criança que temos em nós. Há mais um livro que ainda não recomendei muito por ser recente, mas tenho a certeza que entrará nesta lista: “Ler o mundo” de Michele Petit.
- Se fosses um não leitor, qual o conselho que te davas? Qual/quais os livros que aconselharias a quem não tem o hábito de leitura?
I -Diria para continuar a procurar, entre vários autores, vários estilos. Acredito que, para nos tornarmos leitores, temos de descobrir o prazer que tiramos da leitura e isso só pode vir com a liberdade de escolha.
M – Sim, eu emprestar-lhe-ia muitos livros, de géneros diferentes, e explicando-lhe a liberdade de poder pegar num, de espreitar, deixar de parte, pegar noutro, voltar ao primeiro, pegar noutro. Foi assim que fiz com os meus filhos, deixando livros abertos pela casa. E acredito que gostar de escrever faz parte da forma como se apreciam os livros. E voltamos ao início, é isso que fazemos no Re-Word-It.
Descubra mais conteúdos Desculpasparaler nas redes sociais: