A voz da contracapa

Singularidade de uma carta

Convidei a poeta Inês Francisco Jacob a escrever sobre como o livro «Cartas a um jovem poeta» de Rainer Maria Rilke. Quando enderecei o convite, achei que seria a combinação perfeita para alguém que é poeta e que criou um projeto que escreve cartas a pedido. Mal sabia eu que este livro a tinha influenciado como artista na procura da «voz» e na urgência da escrita e, na criação de um projeto chamado «Um código postal», onde toda intimidade e aproximação é um ofício que define a singularidade de uma carta!

Há muito tempo que queria ler «cartas a um jovem poeta» de Rainer Maria Rilke, considerado uma dos maiores poetas em língua alemã do século XX. Senti-a a necessidade de estar acompanhada na troca de ideias por um/a poeta. Rapidamente, o nome de Inês Francisco Jacob surgiu. Tenho uma profunda admiração pela Inês, alguns dos seus poemas com os quais me relacionei (sim, é de uma relação que se trata…) descobri na página opoemaensinaacair de Raquel Marinho e, mais tarde, voltei a deparar-me com o seu nome numa entrevista ao podcast Ponto Final, parágrafo, pelo qual descobri que a Inês criou um projeto de escrita de cartas a pedido.

Numa era marcadamente tecnológica, em que escrever uma carta é raro, achei curioso. Sei que sou suspeita, pois sou daquelas que adora receber uma carta e um postal. Aliás, criei o hábito de enviar uma carta para mim própria sempre que viajo. A carta cria relação, implica instrospeção e sugere intimidade.

Saibam como o livro «cartas a um jovem poeta» influenciou o caminho da poeta Inês Francisco Jacob:

Creio que já todos sentimos, uma vez que seja, a vontade ou urgência em partilhar o nosso profundo assombro com pessoas que admiramos. Com quem escreve, quem pinta, quem esculpe, quem compõe, quem, à sua maneira, alterou o nosso mundo. Dizer ao artista ou à pessoa – que nem sempre significa bem o mesmo –, como a sua obra nos inspirou a tomar
algum caminho, a procurar alguma verdade. Se os artistas que admiramos são nossos contemporâneos, então a aproximação torna-se ainda mais inevitável.
O jovem Franz Xaver Kappus, que para além da carreira militar almejava concretizar-se na poesia, decidiu escrever a Rainer Maria Rilke. Dessa correspondência germinou um livro – publicado postumamente –, com 10 cartas trocadas entre «mestre» e «pupilo». Para lá da leitura pedagógica, dos conselhos, das sugestões, das questões mais práticas, recebemos um verdadeiro tratado filosófico-poético sobre a urgência de escrever, sobre a necessidade, acima de tudo, de o fazer. Os ecos dessa troca ainda hoje me beliscam os ouvidos.
Estas reflexões sobre a poesia – sendo que muitas delas jamais encontram uma conclusão definitiva –, servem de exemplo a toda a criação artística. Naturalmente que já passaram mais de 100 anos aquando do momento em que esta correspondência se estabeleceu, e é certo que os tempos mudam, as pessoas mudam, a forma como encaramos a literatura também pode sofrer algumas adaptações, mas, no que diz respeito ao ímpeto, a um impulso difícil de domar, há linhas que são intemporais, comportamentos que pertencem à pele dos poetas e que não encontram desordem fora de uma suposta época.


Por que se escreve? Por que se quer fazê-lo? Por se precisar de o fazer. É também nessa montra evidenciada pelo jovem Kappus que Rilke mergulha num diálogo pleno de humildade, introspecção e transparência. Por vezes é necessário que surja este confronto de ideias e vontades para equilibrar as decisões e as intenções. A busca incessante por uma voz “única”, a resposta direcionada para um estímulo que se torna físico, a vontade – possivelmente inerente a todos os poetas em qualquer «fase» de existência –, de marcar uma posição, que não tem de ser necessariamente política, mas, no seu entender, isolada, única. Não se procura, por isso, a
repetição, a cópia, a redundância, mas «a» voz.

É também no formato da epístola que tendemos a aproximar-nos mais de um sistema de palavras e ideias que habitam a intimidade com maior certeza. A carta permite-nos, com tempo e espaço, retirar algumas amarras, maneirismos, tiques ou fugas da vida mais mundana. A carta expõe, não impõe. A carta embala-nos, permite-nos estancar a dúvida no papel, grudar às folhas uma sensação de quase imortalidade – não fosse o papel perecível. Mas as palavras, com alguma sorte, não o são. É isso que nos vale.
Foi a pensar na carta enquanto objecto, e no ritual que compreende todos os seus capítulos, que criei o projecto Código Postal. Nele, crio de raiz uma carta para uma pessoa concreta. Os textos podem ser escritos em prosa ou em poesia. Podem partir de uma ideia muito específica, um contexto peculiar ou, ao invés, podem ser erguidas com absoluta liberdade. Comecei a dar asas a este projecto em Novembro. Até à data já escrevi cerca de 140 cartas. Todas diferentes. Todas personalizadas. É um exercício mental e físico muito grande. Não esperei, na altura em que comecei a divulgar a ideia, que a sua concretização fosse tão intensa e que expusesse tamanha vulnerabilidade – da parte de quem faz o pedido e da parte de quem corresponde a tal. Essa tem sido uma das grandes surpresas do projecto. Há um sem fim de ideias e emoções transversais a cada pessoa. As pessoas, nas suas esferas de base, são muito semelhantes.
Mais de 100 anos volvidos e a correspondência entre o jovem soldado e Rilke ainda ressoa pelas gerações que o permitirem e procurarem – ou encontrarem. As meditações em torno de um hipotético chamamento para criar (neste caso, poesia), para que a sobrevivência não seja tão dolorosa, ainda têm validade. Talvez o tenham para sempre.

Generosamente escrito por Inês Francisco Jacob.

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